quinta-feira, 26 de junho de 2014

Tic.


       Dia desses me olhei no espelho e, além da maquiagem borrada, reparei num relógio estranho que marcava um tempo descompassado. Sem números e com ponteiros demais, marcava e remarcava o tempo de uma forma quase incompreensível. Alguns ponteiros eram de movimento quase imperceptível; outros mal se podiam controlar. E em meio a tantas voltas, o zumbido do relógio tilintava num som familiar. O som vinha de mim. No lugar do "tic-tac", o "tum tum" do coração.
   Me peguei notando pequenos detalhes. Como, apesar de aparentemente novo, estava gasto e corroído. Parecia ter sofrido algumas quedas, haviam alguns arranhões, mas ainda era um aparelho admirável. Por um tempo pensei que houvesse saído do futuro, já que nunca havia visto nada igual... mas não. Seu tempo era o de agora, mas sua órbita era improvável. Não era possível programar uma rotina através dele, como se faz com relógios comuns. Seu descompasso o tornava imprevisível. Provavelmente marcava apenas a hora do inesperado.
     Enquanto olhava, me vieram à mente as sensações ruins que meu peito carregava. A tristeza de sonhos não realizados, o lamentar das falsas expectativas, o arrependimento e dores de cicatrizes que ainda doiam. Senti o peso dos meus pecados. Me veio o amargor de pensar que não vivi como deveria... que gastei minha tão recente juventude pensando em coisas que não me realizavam. O relógio pareceu correr mais rápido. Me veio o medo de que se quebrasse, de que parasse de repente e o tempo acabasse.
   Num ímpeto, fechei os olhos. Família. Amor. Amigos, mesmo que poucos. Misericórdia de um Deus. Senti parte do peso ceder e cheguei a sorrir. Trabalho, me garantia ter o pouco que tinha. O suficiente. Irmãos, mesmo sem laço sanguíneo. Amor. Amor... lembrar do amor que tenho guardado no peito era o que fazia meu coração se acalmar. E o relógio, como numa dança, o acompanhava. E mesmo de olhos fechados, aos poucos podia sentir que seu descompasso ia fazendo cada vez mais sentido.
     Mas talvez eu tenha caído no sono.
    Ao abrir os olhos, não havia nada no espelho além de um reflexo raso. 
    E o calor no peito me fez perceber que rasa assim também é a minha vida. Porque não posso prever o futuro que me espera, nem posso garantir quem chegará a alcançá-lo. 
E o que eu sou no meio de tudo isso?
Talvez seja o som do relógio que bate.
Talvez o cruzar de ponteiros inexplicáveis.
De uma coisa eu sei.
Sou pelo compasso de um Relojoeiro que me traz sentido.