segunda-feira, 29 de julho de 2013

Coração de Maria




Foi mesmo ontem que a vi pela última vez. Nem faz muito tempo. Ou não parece que faz. Foi naquele dia em que vi de longe o sorrisinho amarelo, que de tão tímido me encantava. Apesar dos pesares ainda sorria a minha Maria. Tinha mais força do que eu, do que o mundo, e no fim era ela quem me dava força também.
Lembro do cheirinho de doce de leite que ela tinha e do brilho empolgante nos olhinhos arregalados pela surpresa do presente. Faltavam poucos dias até que fizesse aniversário, e eu resolvi me adiantar de vez. Qualquer coisa pra fazer sorrir minha Maria.

Abriu o pacote com cuidado, sem rasgar nem um pouquinho do embrulho e quando enfim o desfez soltou um gritinho animado enquanto me abraçava com força. Seus bracinhos finos e miúdos mal me alcançavam, mas me acalentavam o calor de um universo inteiro. Saiu correndo e voltou vestindo o presente que acabara de receber.
Acho que vi o desenho do vestido em sonho, dessa parte não me lembro bem. Mas sei que o pedi assim, carregado de flores e rendado de esperança, para realçar o brilho da cor de terra viva da minha menina. Com toda sua beleza pequenina ela girava e girava, enquanto ignorava os apelos da mãe para que tomasse cuidado para não sujar a roupa nova. A cada giro ela dizia "obrigada, tia!" e não podia me ouvir responder "eu é que sou grata a você, minha Maria!"
Mas foi depois do sonho cândido que se seguiu o futuro descabido.
Enquanto saia, ainda sorrindo e abanando os bracinhos, deu, sem ter sequer o direito de saber, aquele que seria o seu último adeus. Ainda me pesa pensar no acontecido, e não consigo imaginar como possa ter se ocorrido tamanha atrocidade.
Num fim de tarde infeliz, meu anjinho virou alvo do destino cruel e sentiu no peito a dor miserável de uma vingança que não lhe cabia. E era tão pequenino o peito de minha Maria. Onde só havia mesmo espaço para amar e retribuir seus amores, de repente passou a jorrar o sangue que agora escorre em minhas mãos.
E o tanto que corri, o tanto que orei, clamei, implorei por misericórdia. Se fez mudo o meu grito em meio ao silêncio de minha menina. O quanto doía, o quanto corroia, e fazia chorar, eu mal percebia.
Amaldiçoei o mundo, condenei ao inferno o infeliz que numa alucinação diabólica arrancou do mundo a vida mais pura que existia. E no meu peito havia ainda a dor que sentiu minha Maria, ao vê-la tão fria e ainda serena no leito florido em nossa casa. E só o que eu via era minha flor, que nem a morte tirava o perfume e a beleza, que continua tão viva em minha mente.

E lá se foi minha menina, meu tesouro, se guardar no canto simples onde se fez escrito "AQUI JAZ MEU CORAÇÃO".

OBS: Texto feito para o blog "Poetas no Divã", mas em homenagem à pequena Maria Heloise, que teve sua vida tão bruscamente tirada no começo deste mês. Senti a dor da família, as lágrimas dos amigos e de todo mundo que a amava... "o mundo não vale o mundo", é o que dizem, e pode até ser verdade. Mas ainda me sustento - e tento dar o mesmo consolo aos outros - em que criou tudo isso, sempre, até Quem o momento do "reset" chegue.

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