sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Ana e o Mar.

 
"Todas as cartas de amor são. Ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem"
Fernando Pessoa



            Deve ser impossível de explicar. Talvez.

           Mas foi impossível desde o princípio, e mesmo assim se fez.           
          Lembro-me da primeira vez que a vi. Era ainda uma criança. Seus olhinhos claros e expressivos, deslumbrados em me ver, eram encantadores. A mistura de temor e ansiedade eram quase palpáveis na garotinha que não sabia o que tinha diante de si. Pela primeira vez via algo muito maior que sua casa. Ela já era linda, mas esse era apenas um detalhe.    
          Tantas outras crianças me viam da mesma forma. Sempre gostei dessa atenção, mas com o tempo me acostumei com reações como aquelas. No fim das contas sempre se tornavam sensações das lembranças boas de uma infância distante. Grande falha dos homens, que crescem e se esquecem da capacidade de aproveitar as coisas boas. Mas Ana não.          
         Os dias se passaram, e a menininha voltou. E veio mais uma vez, e outra. Todos os dias, na hora marcada, vinha até mim e fechava os olhos. Fechava os olhos e abria os braços, como se pudesse me abraçar de uma só vez. Sentia o vento lhe remexer os cabelos, o Sol avermelhando sua pele tão delicada. Totalmente descompromissada de qualquer outra coisa, ela parecia apurar cada um dos sentidos para saborear aquele momento. Como não chamar a minha atenção àquela garota que me sentia como ninguém antes. Provavelmente não era só eu que me rendia a sua simpatia. Todos os outros elementos se voltavam para ela, como se servi-la fosse um presente.            
         E se seguiram os dias, os meses, os anos... e ela nunca se esquecia de mim. Já não podia realizar meu trabalho com a mesma magnitude sem que a visse antes, sem ser notado por ela. A vi crescer aos poucos, e tão rápido. Minha garotinha com o tempo deixou de fazer castelinhos de areia para se aventurar em ondas maiores. E cada dia mais linda, mais minha. 
         Até que um dia ela falou comigo pela primeira vez. Falou em meio a lágrimas, situações que a machucavam por dentro, e eu só pude achar consolo em confortá-la com meu silencio. Desde então falava comigo todas as vezes (e foram muitas) em que sentiu necessidade. E como eu era feliz em me fazer presente dessa maneira. Era ela, cada dia mais linda, mais madura, mais minha. 
        Então aquele rapaz se aproximou. Aquele que a tinha feito chorar. Sorria e tentava enfeitiça-la, enganá-la, mais uma vez. Eu já não podia suportar tal situação. Ele não a conhecia como eu a conhecia, não poderia fazê-la feliz... ele não amava a minha Ana. Não como eu.

            Só então percebi o curso que havia tomado. Ana se tornara a minha lua, a bússola que regulava meus movimentos, minhas rotas. Já não existia para outra coisa, senão amá-la. E a cada onda, a cada balanço, em qualquer lugar por onde pudesse me estender, eu o fazia por ela. Então percebi que muito mais do que minha, eu era todo dela.
           Não poderia ser daquele jeito. Eu sei, sempre soube. Séculos, milênios, acompanhando, observando os homens, me mostraram como tais situações se concluíram. Mas tanta experiência não adianta de nada quando se está diante se um sentimento tão grande. Pela primeira vez percebi que o amor é maior do que toda minha extensão, maior que a imensidão do céu, e talvez nem o infinito consiga expressá-lo. Mas porque me deixei levar por isso?! Mesmo tendo o controle sobre todas os caminhos, abrigar milhares das criaturas as mais diversas, e sendo quem eu sou, me torno pequeno diante desse sentimento.  
          Mas bem mais forte do que eu - e completamente independente do amor - é o tempo. Ele passou e Ana, a minha Ana, cresceu. Não pude evitar que se apaixonasse por alguém que a queria de verdade, mesmo que nada pudesse ser comparado com o que eu sentia. Agora ela já não vinha mais sozinha. Agora eu era o cenário perfeito para seus momentos com seu outro amor.  
          Sim, porque Ana nunca me esqueceu. 
          Vi seus filhos me descobrirem pela primeira vez, assim como havia sido com ela a tanto tempo atrás. A vi se tornar uma mulher ocupada, cheia de compromissos e obrigações, mas ainda assim nunca me abandonou. Minha alegria se renovava a cada vez que a via, e descontrolado algumas vezes chegava a me atrapalhar com a distribuição das ondas. E era ria, como se soubesse interpretar minha reação. E seu sorriso, sempre tão lindo, me fazia voltar ao meu lugar e me alimentava até a próxima visita.   
         Até que um dia, um maldito dia, descobri que Ana não viria mais. Me lembro que a ultima vez que a vi foi diferente das demais. Minha Ana, já idosa, vinha cada vez menos e ainda assim contra a vontade de quem tentava zelar por sua saúde. Naquela última vez ela fez o esforço de chegar até mim e se banhar, de um jeito que nunca tinha feito antes. Parecia pedir que a trouxesse para mim, definitivamente. Mas eu não podia. Ana não me pertencia dessa forma. Quando ela se foi, sussurrou, pela ultima vez, um “adeus” com os lábios.     
          E pensando bem foi tão rápido. Muito mais breve que um sopro, quase uma brisa, que conseguiu me transformar completamente. Aprendi a ser feliz com as lembranças dela. Hoje, onde quer que eu esteja, é para ela que rendo minhas ondas, redescubro meus tesouros, guio minhas rotas... À Ana que nunca morrerá, enquanto eu existir.


"Todo sopro que apaga uma chama reacende o que for pra ficar..."
♪♫


OBS: Estava eu vendo o dvd de "O Teatro Mágico" aqui com os meus primos. E foi só escutar essa música pra me bater essa vontade de fingir que sou o mar. Sempre gostei de OTM e essa música... há, tem santo que não goste dela?!

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