terça-feira, 12 de março de 2013

A flor e o elo.

(Se quiser, experimente ouvir enquanto lê! :)




Era pequena a flor que reluzia na cúpula de vidro. Separada das demais, era no fim das contas igual a todas as outras. De espécie simples, dessas cultivadas em qualquer jardim, era ainda mais mirrada e de aparência quase murcha. Ainda assim foi eleita para servir a um propósito: o de receber o anel dourado e assim honrar os que a cultivaram.

Eles eram um casal simpático, que tinham sempre um sorriso no rosto, e mundialmente conhecidos pelos jardins luxuosos que cultivavam. Haviam espécimes raras de rosas, lírios, orquídeas, das mais diversas cores, tamanhos e perfumes. De tão maravilhosas, enchiam os olhos de quem delas se aproximasse. Seus canteiros eram visitados por cientistas, botânicos e outros tantos curiosos. Ninguém em nenhum outro lugar do mundo conseguia produzir plantas tão vistosas, robustas e capazes de render frutos tão encorpados.

Porém, ainda antes que tudo isso se tornasse possível, o casal em começo de carreira cultivava no pequeno jardim de sua casa as primeiras flores de sua produção. Eram produzidas com todo cuidado e atenção e vendidas nas primeiras horas do dia na feirinha do bairro onde moravam. Haviam bons fregueses que admiravam suas rosas e petúnias, e aquilo já os enchia de orgulho. Chegou até eles então uma nobre senhora que, ao ver as flores trazidas por sua ajudante, se interessou em se associar ao casal. Botânica formada, ela vira neles uma chance de sucesso e resolveu financiar a produção, a ponto de que se tornasse de fato profissional. E os dois não poderiam esperar oportunidade melhor! Poder seguir a vida fazendo o que amavam fazer! E então fecharam o contrato.

Foi nesse momento que ela, a jovem jardineira, fez um pedido ao esposo. Queria que escolhessem dentre as sementes simples que ainda tinham uma que fosse plantada, tradada com carinho, e estivesse com eles durante toda a nova trajetória. E então o fizeram, procuraram uma semente que tivesse algum detalhe que a tornasse especial, que os lembrasse como tudo começou e de onde vieram. Mas não era das tarefas a mais simples... ainda que já tendo um conhecimento precioso sobre sementes, mesmo ao olhar mais atento elas pareceriam iguais. Enquanto vasculhavam, o jovem separava aleatoriamente algumas sementes que já não tinham mais valor.

Até que, ao descartar uma outra, sua esposa o interrompeu e recolheu a semente. Entendia-se porque deveria ser descartada    era pequena demais, verde, e claramente não tinha se desenvolvido como as outras. Provavelmente, mesmo que plantada, não vingaria. Mas para ela não importava... seria aquela. E se não vingasse, tudo bem, não haveria outra flor.

E então plantou, com a melhor terra, com o melhor adubo, regando regularmente com todo o cuidado. Passaram-se alguns meses, eles se mudaram, construíram sua primeira estufa e encontraram novos e mais poderosos clientes. Os negócios iam bem, mesmo que aos poucos, mas a flor não brotava. Ainda assim a terra era constantemente revolvida e tratada. Passaram-se mais alguns meses e passaram a desenvolver outras espécies de plantas, os negócios alavancavam. Enquanto a flor selecionada ainda não revelava surpresas. Mas os cuidados permaneciam e já haviam virado rotina.

Foi durante uma viagem do casal, numa exposição fora da cidade, que o primeiro raminho floresceu. Frágil, delicado e tão pequeno que qualquer vento um pouco mais forte seria capaz de desfazê-lo. Quando enfim puderam ver que a florzinha enfim começava a nascer, celebraram de tal forma que resolveram enfeitá-la com um pequeno anel dourado, posto cuidadosamente ao redor daquele que seria seu caule.

O tempo passou, e a florzinha aos poucos se desenvolvia. Em meio a tantas outras flores magníficas, ela enfim ousou desabrochar, brotando somente uma flor, uma única vez. Tão fraca, com pétalas desbotadas e com pouca sustentação, que não parecia ser capaz de se suportar.

As pessoas não entendiam porque lhe era dada tanta importância  Ao público que visitava as estufas do casal, que agora se estendiam a vários quilômetros nos campos ao redor de uma pequena mansão, ela era apresentada por último, como se fosse a criação mais especial de todas. 
O curioso era que, desabrochando uma única vez, a flor que parecia tão frágil nunca se desfizera. O tempo a maltratava, era verdade. Suas pétalas estavam cortadas, em alguns pontos já haviam pedaços caídos, mas ela permanecia firme. Um casulo foi feito para protegê-la, e como que por mágica ela permaneceu em pé durante muitos anos.

Décadas se passaram, o jovem casal envelhecera e já não era capaz de cuidar tão bem dos seus suntuosos jardins. Foi quando decidiram entregar o negócio aos trabalhadores mais novos e voltaram a morar na antiga casinha onde tudo havia começado. Da mansão onde tão bem viveram, levaram somente algumas mudas de roupa e a frágil florzinha. Abriram as portas da velha casa e passaram a receber novas e frequentes visitas. Julgaram que para velhos sozinhos como eles não era bom e nem saudável se aprofundar na solidão. E todos os conheciam, tendo o carinho especial das crianças do bairro, que se divertiam com suas histórias e as lições de jardinagem.

Foi quando, num fim de tarde qualquer, caloso e tranquilo, viram as últimas luzes do dia refletir no cristal do casulo da flor. Seus olhos já cansados enxergavam muito pouco, mas um perfume suave começou a tomar conta do lugar. Notaram então o efeito da refração das luzes e o pequeno espetáculo de cores que formavam. Num breve clima de sonho, se renderam e cochilaram. E quando enfim o sol se pôs, e de repente despertaram, puderam notar o que havia mudado no local. A pequena florzinha não estava mais em seu lugar de origem. Provavelmente no momento de distração alguém a havia levado...

A senhora então se desesperou. Onde estaria sua florzinha?! Procuraram sem rumo pela casa; afinal onde poderia estar uma flor que mal tinha chances de ficar em pé fora do casulo? Passaram-se algumas horas até que notassem rastros de terra no tapete da cozinha, em direção ao jardim. O seguiram preocupados e sem esperança, procurando algum outro sinal. O jardim agora parecia ainda menor que antes. Muito menor diante da lembrança dos imensos hortos e estufas da mansão. Mas foi ali, num cantinho mais exposto do canteiro, que encontram a florzinha já plantada, sendo acalentada por uma das crianças da vizinhança.

Nervosos, os dois se aproximaram buscando alguma explicação. Aquela travessura lhes custaria a flor da qual cuidaram a vida inteira, a flor que simbolizava todos os anos de esforço e felicidade na profissão. Mas no menino traquino não havia nem sinal de preocupação ou arrependimento. Ele se divertia em revolver a terra, espalhando-a para todos os lados, e expressava até certo orgulho.

"Plantei a mudinha", ele dizia.

Ainda mudos, eles olharam confusos o cenário inesperado. Já era noite, mas na penumbra do jardim a pequena florzinha praticamente irradiava uma pálida luz própria. Se aproximaram mais e viram, pela primeira vez, algum sinal de viçosidade. Não ousaram tocá-la, mas a senhora sentiu que alguma coisa faltava.

"O anel" questionou ao menino "Onde está o anel que a enfeitava?"

O garoto então retirou do bolso o enfeite ainda sujo de terra "Desculpa... é que parecia que apertava"

Receberam de volta o pequeno elo dourado e levaram o menino para dentro da casa, estava ficando tarde e sua mãe logo se preocuparia com sua ausência. Ele se foi com alguns biscoitos nas mãos e a promessa de que poderia voltar no dia seguinte.

Então o casal voltou novamente para o jardim, com a dor na consciência de que a florzinha provavelmente não teria resistido ao sereno. A senhora, já chorosa, lamentava que tantos anos de cuidado tivessem tal fim. Qual não foi a surpresa ao notarem que, apesar dos ventos que a balançavam, a florzinha permanecia forte. Como girassol que gira de acordo com a posição da luz, ela se erguera como se algo, de repente, a sustentasse. Não conseguiam entender. Apesar do impulso de pensar que seria melhor removê-la da forma mais delicada possível e devolvê-la ao casulo, não conseguiram reagir. De tão perplexos, sentaram-se ao redor do canteiro e horas depois adormeceram. Acordaram com o amanhecer e os raios de sol lhe cegaram os olhos. De repente a preocupação do quanto isso afetaria as frágeis folhas e pétalas da florzinha. Mas ela permanecia, inabalável, e ainda mais firme.

O dia passou, e com a volta do garoto, que teimava em continuar revolvendo a terra em volta da flor, notaram que em poucas horas haviam brotado raízes. Ao fim do dia, outro pequeno botão começava a aflorar no novo ramo que surgira. Era, ao mesmo tempo, espantosa e maravilhosa a forma como agora se desenvolvia. E o casal, que tantos anos se aprimoraram no cultivo de flores como aquela, ficou cada vez mais intrigado. Afinal, porque ela nunca cresceu dessa forma antes?!

Não haviam explicações. Seria a terra do jardim que favorecia o crescimento? Mas ela fora plantada quando ainda moravam na velha casa, e foi aquela mesma terra que havia sido utilizada em seu procedimento. Seriam as mãos do garotinho?! Pouco possível... o motivo de ele estar tão orgulhoso sobre o crescimento da florzinha foi justamente o fato de que nunca antes havia conseguido fazer brotar alguma coisa. Nem mesmo as sementinhas de feijão usadas nas experiencias com as outras crianças.

Foi quando tocaram a flor pela primeira vez em busca da resposta, que enfim a encontraram. Já havia passado certo tempo, ela se revelara a flor mais linda que jamais imaginariam que pudesse ser. Mas ao revistar seu caule, agora forte e grosso, notaram que havia um ponto onde ele se afinava, se contorcia. Como se fosse o único ponto seco e sem vida da flor, todas as novas flores floresceram a partir dos novos ramos que brotaram, mas aquele ponto permanecia intacto.

Então entenderam. Era aquele o lugar onde antes ficava o anel dourado que julgavam abrilhantar e honrar a flor eleita. Mesmo com a intenção de a diferenciar das demais, foi aquele ato que impediu que a plantinha se desenvolvesse como deveria. E ao se depararem com a verdade, quão mais a admiraram por     mesmo que com seu caule amordaçado     crescer e florescer com a pouquíssima força que lhe restava. E por tantos anos se sustentara assim, como se soubesse que um dia enfim poderia gerar outros ramos e mostrar seu verdadeiro potencial.

E mesmo que agora fosse merecedora das honrarias que as outras flores premiadas do casal receberam, eles a mantiveram ali, no velho canteiro. Suas mudas, que eventualmente podiam ser extraídas, foram distribuídas entre as crianças do bairro, e em alguns meses cada casa tinha em seu jardim uma amostra da flor que representava a vida dos dois. Graças a elas, eles se eternizaram, e permaneceram vivos mesmo depois de sua morte.
OBS: não pensei que fosse conseguir chegar ao fim disso aqui kkkkkk' Mas preciso ficar feliz em saber que acabou exatamente com a moral que eu queria transmitir quando pensei nessa história. Porque ela mudou totalmente ao longo do curso... mas no fim ainda retratou essa vida de estar abrilhantada sob expectativas até poder florescer ao estar liberta delas. Comigo foi assim, e eu sei que com um bucado de gente também... espero que se enxerguem! :)

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