quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Evgenia. - por Pedrinho Fonseca

 
 
"Escreva, menina.


Professor, mas a que maneira de escrita o senhor professor refere-se, que narrativa, e, desculpe-me, algum tema de sua preferência?

 
Apenas escreva, menina.
Dimitri, confesso que sinto-me suja, senti-me imunda no primeiro instante. Ter a sua língua entre os meus lábios, passando por entre eles, lentamente, ao encontro de minha, aquilo deu-me um incômodo, não nego que gostei, mas. Mas havia criado uma barreira, você conhece a barreira: ouvia a frase “não posso fazer isso, não devo” durante a eternidade do seu – do nosso – beijo; portanto admito que começar a sentir em mim o calor do seu corpo aproximando-se deflagrou um arrepio, o que contrapõe-se a uma ideia rígida que possuía, que arrepios estão condicionados ao frio. Há o abismo entre nós, conhecido, Dimitri. Você está numa margem, estou na outra margem. Entre nós, um abismo negro onde consigo ler, ao olhar para o fundo, palavras como afaste-se, cuidado, não, proibido, finja, esconda. Sei que o abismo tem a espessura de um passo; isso, Dimitri, me desespera. Sei que basta dar um passo e as palavras ficam para trás, como pesadelos de ontem, e sobraria, à minha frente, você, uma ponte. Você, minha ponte inacabada, estique-se, dê-me as mãos, eu tenho medo, mas sei que posso, que devo, no fundo eu sei que devo, pois o abismo e suas palavras são ilusões de uma alma atormentada pelas culpas, verdades absolutas, meras convenções que nos contentamos ao longo dos anos; e vamos envelhecer um dia, Dimitri, e isso tudo, este abismo horroroso, será lembrado como um passo não dado, apenas; dê-me, venha, estenda-me as mãos, Dimitri, eu imaginei outro, mais outro, tantos outros beijos. A pele tem calafrios, está quente e tenho calafrios, mas não febre, o que eleva-me a uma possibilidade de querer. E querer é tudo aquilo que não quero, não posso, eu digo em voz alta “não quero” e não escuto eco no abismo, pois o abismo é falso, você é minha ponte, estique-se, só mais isso que o peço, estique-se, puxe-me, irei. Tenho vontades que jamais confessarei, não hoje, talvez amanhã; a coragem, quando igual ou maior que a vontade, faz-nos andar; acene para mim, despeça-se de mim, é tudo o que não preciso, Dimitri, mas faça por mim, talvez eu entenda, na dor, que não posso perder-me. Não posso perder-me. Minha madrasta. Ela casou com meu pai, ela atravessou um abismo, quem mais?, quem mais?, me dê um exemplo, Dimitri, a coragem nasce do exemplo do outro, que por ora revelou-se capaz; capaz de eu conseguir, dê-me uma das mãos apenas, já sinto ter a coragem, falta-me levantar a cabeça, trocar a visão do abismo pela do horizonte; ajude-me, Dimitri; minha negação do passo, um pedido de ajuda. Ajude-me, Dimitri. “Não posso fazer isso, não devo”, que tormento ouvir a minha própria voz falando-me mentiras, desfazendo-me do que verdadeiramente sou; que sentimento falível, este, a covardia. E justifico-me em outro pior, o heroísmo. Eu, heroína da vida de tantos, que hipocrisia. Faltava-me um cavalo, espada, escudo e um corte de cabelo menor, uma espécie de guardiã do desamor, que triste fim. E o beijo, lembro-me, como dizia antes, da sua língua lenta e áspera, lembro-me como se fora verdade, ainda que saiba que não. Que é coisa da minha mente, não nos beijamos; fui beijada em pensamento por você. Obrigada, Dimitri. Antes o abismo fosse largo, longo, mais escuro, intransponível: sim, intransponível – assim eu diria “não vou fazer isso, mas prefiro morrer – e vou”. Não. Não. Não, Dimitri, tenho em minhas mãos um livro que não era seu, mas que diz que “a verdadeira verdade é sempre inverossímil”, isto tudo que não acreditamos é o que temos, vamos; dê-me a sua mão.


Escreves como quem ama, menina."

Pedrinho Fonseca (Texto extraído do site "Loja de Histórias")
 
 
OBS: O site foi realmente um achado! A "Loja de Histórias" na verdade não é exatamente um loja... talvez um brechó (kkkk' ou não). A idéia do autor (o Pedrinho) é a seguinte: as pessoas lhe enviam fotos tiradas em qualquer lugar, qualquer situação e então ele faz uma história (ou também música, verso, conto, poema) baseado no que a imagem transmitiu pra ele. Detalhe de que ele não aceita informação nenhuma sobre a foto enviada. Esse texto foi um dos que mais curti no site!
 
É uma daquelas ideias simples que a gente curte e fica se lamentando de não ter imaginado antes, sabe?! 

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